Estéril e remota, a Caverna Chiquihuite, no México, parecia um lugar improvável para qualquer pessoa viver. Mas os objetos de pedra recuperados nas profundezas da caverna podem contar uma história diferente.
Na Caverna Chiquihuite, os investigadores usam equipamentos de proteção para evitar a contaminação com ADN moderno nas áreas de escavação onde procuram assinaturas genéticas de animais e plantas. FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
Quando os investigadores entraram pela primeira vez numa caverna no alto das montanhas desertas do centro-norte do México, esperavam aprender como era o ambiente há milhares de anos. Mas a descoberta inesperada daquilo que acreditam ser uma ponta antiga de um projétil deu origem a uma escavação de uma década que pode reescrever a história das Américas. De acordo com um artigo publicado no dia 22 de julho na revista Nature, o sítio arqueológico, conhecido por Caverna Chiquihuite, pode conter evidências da presença humana, colocando pessoas na América do Norte há cerca de 30 mil anos – quase duas vezes mais cedo do que a maioria das estimativas atuais para a chegada dos primeiros humanos ao continente. A questão de quando é que as pessoas chegaram às Américas tem sido debatida há mais de um século. Durante muito tempo, a teoria vigente colocava esta chegada há cerca de 13.500 anos. Mas os arqueólogos estão agora a explorar locais que continuam a empurrar essa data para trás, incluindo sítios onde alegadamente encontraram sinais da presença humana há mais de 30 mil anos. As evidências que sustentam estas alegações são muito contestadas, e esta descoberta mais recente já está a gerar muita controvérsia.
Os cientistas comparam notas sobre a estratigrafia da Caverna Chiquihuite, em preparação para a recolha de amostras de vestígios de ADN de plantas e animais nos sedimentos. FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
“Todos sabem que, quando entramos no ringue a este nível, estamos à procura de um debate internacional, e vamos ter esse debate, pelo que devemos ter a nossa defesa bem preparada”, diz Loren Davis, arqueólogo da Universidade Estadual de Oregon. “Para mim, é inevitável. Nós vamos continuar a empurrar esta data até já não ser possível fazê-lo mais.” Escavando o chão inclinado da caverna até uma profundidade de três metros, o diretor de escavação e autor principal do artigo, Ciprian Ardelean, arqueólogo da Universidade Autónoma de Zacatecas, e os seus colegas investigadores descobriram milhares de pedras que identificaram como lâminas, pontas de projéteis, e flocos produzidos pelo processo de fabrico de ferramentas. O que a equipa alega serem acessórios e flocos tem um tipo de calcário que não se encontra na caverna, e que se acredita ter sido levado para lá. Os arqueólogos também descobriram pedaços de carvão nas camadas de sedimentos. Embora seja impossível determinar se o material foi queimado por ação humana ou por eventos naturais, a datação por radiocarbono mostrou que tinham entre 12 mil e 32 mil anos de idade. Os investigadores não encontraram restos mortais humanos, mas encontraram alguns ossos de animais. No entanto, a equipa detetou a presença de ADN humano nas camadas de sedimentos. Não se sabe se este material genético foi deixado por pessoas na antiguidade ou se a escavação foi contaminada pelo ADN de humanos modernos. “A contribuição principal de Chiquihuite é a de trazer outra luz minúscula, outro sinal minúsculo, de que existe algo ali”, diz Ciprian Ardelean, que dirige as escavações na caverna desde 2011.
O arqueólogo Ciprian Ardelean dirige as escavações na Caverna Chiquihuite.
FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
Qualquer pessoa que visite atualmente a Caverna Chiquihuite irá assumir que os humanos nunca teriam escolhido este local para viver, porque seria muito inóspito. Mas podem estar erradas.
A equipa extraiu pólen e ADN antigos dos sedimentos e encontrou sinais de que os ambientes desolados da caverna já foram muito mais frios, mais verdes e mais húmidos. A um nível profundo da escavação, datado de há 28 mil anos, os investigadores encontraram evidências de abeto de Douglas, uma árvore que já não é nativa do México, para além de um pedaço de pedra que os investigadores acreditam ser uma lâmina criada pelo homem.
Quando os glaciares pelo mundo inteiro atingiram a sua extensão máxima, há cerca de 24 mil anos – conhecido por Último Máximo Glacial, ou UGM – a paisagem em torno da caverna estaria coberta de zimbro, pinheiro, abeto e repleta de lagos e fontes termais. “Seria parecido com o Oregon ou a Colúmbia Britânica”, diz Ciprian Ardelean. “Não seria completamente reconhecível.”
Questionar as evidências A idade extrema reivindicada para a Caverna Chiquihuite não condiz com a visão amplamente aceite de que as pessoas da Ásia atravessaram uma ponte terrestre através do Estreito de Bering para as Américas, porque as camadas de gelo que cobriram o Canadá durante o Último Máximo Glacial (há 26.500 e 19.000 anos) começaram a recuar. Por este e por outros motivos, a descoberta está a ser recebida com cautela pelos especialistas externos que fizeram a revisão dos dados apresentados na Nature.
As pedras que os investigadores acreditam ser ferramentas feitas por humanos foram submetidas a um exame minucioso. Embora os investigadores tenham demonstrado que as pedras vieram de fora da caverna, alguns especialistas questionam se são realmente artefactos humanos ou se foram criadas por processos geológicos naturais.
O arqueozoólogo Joaquin Arroyo-Cabrales (à esquerda) e a especialista em datação por radiocarbono Lorena Becerra-Valdivia (ao centro) analisam restos de animais encontrados na Caverna Chiquihuite.
FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
As alegadas ferramentas de pedra encontradas na Caverna Chiquihuite são feitas de um tipo de calcário cristalizado esverdeado que só existe no exterior da caverna.
FOTOGRAFIA DE CIPRIAN ARDELEAN
Loren Davis, arqueólogo do estado de Oregon que dirige as escavações em Cooper's Ferry, em Idaho, destaca que os ambientes das cavernas também criam muitas pedras naturalmente fraturadas que podem ser mal interpretadas como artefactos.
“É importante lembrar”, diz Loren Davis, “que os humanos não têm o monopólio da física necessária para partir rochas.”
Loren Davis também está intrigado com a ausência de outros sinais de ocupação humana nos depósitos da caverna, como braseiros e ossos de animais com marcas de cortes.
“Podemos ter uma lista enorme de todas as coisas que esperamos ver num sítio arqueológico, e [os investigadores de Chiquihuite] não têm nada para além de pedras fraturadas”, diz Davis. “Se excluirmos as pedras, não há realmente nada.” Apesar de Loren Davis dizer que a investigação é “intrigante”, continua a reservar uma avaliação.
Vista sul da Sierra del Astillero, perto da entrada da Caverna Chiquihuite. Há dezenas de milhares de anos, esta era uma região exuberante repleta de árvores e pontilhada por lagos. FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
E o estilo de fabrico das ferramentas – a forma distinta como as pedras parecem ter sido modeladas – também é estranhamente único. “É muito curioso que seja tão diferente de tudo o que alguém alguma vez conheceu” diz o arqueólogo Tom Dillehay, da Universidade Vanderbilt. “Como é possível que isto não esteja relacionado como alguma coisa previamente conhecida? Bem, é possível.” Em 1997, Tom Dillehay apresentou evidências de que as pessoas tinham chegado à ponta da América do Sul, num local conhecido por Monte Verde, há cerca de 14.500 anos, mil anos antes das estimativas então aceites. A sua alegação também suscitou muito alarido, mas no final as descobertas foram confirmadas. Tom Dillehay salienta que foi alvo de críticas semelhantes sobre as ferramentas de pedra que encontrou em Monte Verde, e acredita que alguns dos projéteis de Chiquihuite podem ser precursores dos projéteis posteriores encontrados no centro-norte do México. Mas Tom Dillehay também expressa algum receio sobre a aparente falta de evolução tecnológica nos artefactos de pedra. Com base na datação por radiocarbono do carvão, o uso da caverna por humanos durou cerca de 20 mil anos. Tom Dillehay diz que há alterações marcantes nas ferramentas de pedra que foram usadas em Monte Verde ao longo de milhares de anos, no entanto, durante um período muito mais longo, as pedras de Chiquihuite não mostram sinais de evolução nas técnicas de fabrico de ferramentas.
As enormes galerias de calcário da Caverna Chiquihuite permanecem constantemente nos 12 graus Celsius, mesmo durante o pico do inverno, quando os investigadores trabalham no local. FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
Dennis Jenkins, professor da Universidade de Oregon que dirige as escavações nas Cavernas Paisley, está preocupado com o facto de muitas das supostas lâminas de pedra não parecerem particularmente afiadas – com base nas fotografias apresentadas no artigo da Nature. “No entanto, havia alguns itens que pareciam definitivamente artefactos” diz Dennis Jenkins. “E o facto de as pedras terem origem no exterior da caverna acrescenta algum peso à alegação de que foram levadas e modeladas para utilização humana.”
Vários dos investigadores externos contactados pela National Geographic recusaram-se a comentar e encaminharam as questões para Michael Waters, diretor do Centro para o Estudo dos Primeiros Americanos da Universidade A&M Texas e especialista proeminente no povoamento das Américas. Michael Waters fez a revisão do artigo, mas também se recusou a comentar, em vez disso, forneceu à National Geographic uma revisão da Science de 2019 autorizada por ele que conclui que os dados genéticos e arqueológicos atuais não suportam uma ocupação das Américas antes de há 17.500 anos.
Próximos passos A equipa de Chiquihuite está a preparar outro trabalho sobre as suas investigações e Ciprian Ardelean está confiante de que os novos dados fornecerão um suporte adicional para as suas conclusões. No entanto, Ciprian Ardelean lembra repetidamente à sua equipa que a Caverna Chiquihuite é apenas um local entre muitos que está a desenhar uma imagem mais completa e complexa de quando e como é que as pessoas chegaram às Américas.
Membros da equipa de escavação da Caverna Chiquihuite entram no local. No início da temporada de escavação de dois meses, várias mulas transportam mais de 1.5 toneladas de equipamento para o local – incluindo todos os equipamentos para acampar, comida e água necessários para suportar uma equipa de cerca de 8 pessoas. FOTOGRAFIA DE DEVLIN GANDY
“Penso que este estudo demonstra que precisamos de reexaminar o que achamos que sabemos sobre o povo das Américas e que precisamos de ter uma mente aberta para um período de tempo muito mais abrangente”, diz Devlin Gandy, membro da equipa de Chiquihuite e arqueólogo da Universidade de Cambridge. “Porém, as datas fornecidas pelos dados de Chiquihuite serão sem dúvida contestadas vorazmente”, diz Dennis Jenkins. “Não tenho dúvidas sobre isso.” Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com.
https://www.natgeo.pt/historia/2020/08/descoberta-surpreendente-caverna-pode-colocar-presenca-de-humanos-americas
Comments