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  • Foto do escritorAndré Pacheco

“Tenho guardado todas as garrafas de vinho da eucaristia, vamos preparar cocktails molotov aqui”.

Ana França (texto) e Tiago Miranda (fotografias), enviados do Expresso à Ucrânia


FONTE: https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/tenho-guardado-todas-as-garrafas-de-vinho-da-eucaristia-vamos-preparar-cocktails-molotov-aqui-a-resistencia-e-lei-divina-na-igreja-do-padre-sebastian/

Rezar, em tempos de guerra, é importante mas não é suficiente. Grande parte do dia do padre Sebastian é hoje passado na rua, a receber quem foge da invasão que avança sobre o seu país, mais uma vez. Não encontra conflitos entre a sua fé e a necessidade de pegar numa arma para defender a cidade, vai organizar uma resistência a partir da igreja do Santo Mártir Clement Sheptytsky.


A simbologia da igreja do Santo Mártir Clement Sheptytsky começa logo no nome. Em 1941, quando a perseguição dos cristãos imposta pelas purgas da União Soviética deu lugar à perseguição nazi dos judeus, Sheptytsky, chefe do mosteiro da cidade de Lviv, dedicou-se a enviar judeus para territórios onde pudessem estar a salvo.


Esta igreja, no centro da cidade e totalmente pejada de arte sacra do chão até ao teto, numa mistura de épocas e de géneros artísticos que a tornaram também um museu, foi fechada pelos oficiais soviéticos, e até 2007 esteve completamente ao abandono. Quem pegou no projeto de reconstrução foi o padre Sebastián, de 66 anos, e é daqui que coordena a ajuda humanitária a quem precisa fugir da invasão russa que começou apenas há cinco dias.


Nos países de leste que fizeram parte da orla de Moscovo, ser católico era ser rebelde, os padres ucranianos, como os polacos, os húngaros, os eslovenos, foram uma força muito importante da resistência. Em 2022 como em 1978, o ano em que o padre Sebastian se iniciou na sua vocação às três da manhã, em segredo, numa cave de uma casa de um casal católico, a igreja é chamada de novo a responder perante o que ele considera ser uma sede de poder do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, um ato de agressão que os ucranianos não provocaram. “Mudei os meus sermões e agora quase só falo da importância da calma e da fé.


A missão da igreja nesta guerra é em primeiro lugar dar paz e calma às pessoas, impedir que sintam pânico, que o medo tome conta dos seus corações e da sua fé”, diz ao Expresso enquanto nos leva pelas salas do museu adjacente à sua igreja. Mas de braço dado com a resistência do espírito, vem a resistência da força. “Não ficamos só sentados a rezar, também nos estamos a preparar para combater. Tenho guardado todas as garrafas de vidro das eucaristias, vamos preparar cocktails molotov aqui, tal como toda a gente, neste mesmo momento, nas suas próprias casas”. Depois de se ter tornado padre passou cinco anos num mosteiro, nem sequer aos pais confessou o caminho que escolhera, era um caminho ilegal na altura. “Eles viviam numa vila perto de Lviv e eu por vezes ia a casa, vestido à civil, eles achavam que eu trabalhava na cidade”.



O padre Sebastián guarda um dos maiores acervos de arte sacra de todo o país, mas grande parte dela está escondida em salas banais, escritórios, cheios até ao teto de artefactos religiosos FOTOGRAFIA: Tiago Miranda

Ao seu lado, o padre Vasyl, muito mais novo, 30 anos mais novo, consente com gestos afirmativos, lentos, de olhos fechados. “Acho que, no fundo, muitos ucranianos, aqueles que ainda se lembram da II Guerra Mundial, que lutaram ao lado dos russos contra os nazis, não entendem bem porque é que a Rússia invadiu o seu país, não entendem a lógica da agressão, há muitos traços culturais que unem os dois povos. Claro que toda a gente com menos de 80 anos é muito provavelmente da opinião contrária, só têm uma memória: Holodomor,


Sibéria, URSS, então não estão nada surpreendidos”, diz Vasyl, parte de uma geração muito mais recente, que tem nos protestos de Maidan a grande referência revolucionária da sua vida. “Eu fui protestar, o padre Sebastian também foi, e, um dia, quando as coisas se tornaram mais violentas e a polícia começou a usar a força, um rapaz perguntou-me: ‘Padre, para que serve a Bíblia numa altura destas?’ e eu disse-lhe que, naquela praça, a Bíblia servia para agredir, com força, quem os quisesse agredir a eles”, conta o padre, que agita os braços da esquerda para a direita como se brandisse uma espada para afastar um exército imaginário de agressores.

A missão de salvar a arte

O padre Sebastián é uma lenda viva de Lviv, até o Presidente da Ucrânia o quis conhecer. Guarda um dos maiores acervos de arte sacra de todo o país, mas grande parte dela está escondida em salas banais, escritórios, cheios até ao teto de artefactos religiosos.


Quando ainda se vivia sob domínio soviético, este e outros padres davam missa na clandestinidade, em caves que hoje servem de abrigo antiaéreo por toda a cidade, tal como aquela para onde nos leva, para vermos a sua coleção de cruzes de ferro forjado, que começou a recolher, no seu carro, com o seu dinheiro, assim que a URSS ruiu. “Tudo o que eu tenho aqui encontrei no lixo, ou abandonado em armazéns, câmaras municipais, casas de velharias, casas particulares que começaram a ouvir falar destas minhas missões exploratórias e quiseram doar o que elas mesmas tinham recolhido das igrejas que ficaram fechadas até 1990”.


Se a Rússia regressar, algo que ninguém em Lviv sequer admite como possibilidade remota, estas peças terão de ser escondidas em algum lado, claro, mas são tantas, tantas. A triagem seria uma dor para o padre Sebastian. “Teríamos de tentar fazê-las chegar à Polónia, tentar dissimulá-las em mercadorias de alguma forma, não sei, porque se ficarem aqui desaparecem ou serão destruídas”. Neste momento, o seu maior desejo é encontrar quem, entre a diáspora de ucranianos por todo o mundo, aceite contribuir com algum dinheiro para a remodelação dos dois andares superiores do museu.



Se a Rússia regressar, o que será das peças reunidas ao longo dos anos? “Teríamos de tentar fazê-las chegar à Polónia, tentar dissimulá-las em mercadorias de alguma forma, não sei, porque se ficarem aqui desaparecem ou serão destruídas”

O rés-do-chão, onde estão algumas das peças mais importantes, está totalmente novo, mas só com mais dois pisos seria possível expor tudo o que está ainda por limpar, restaurar e avaliar. Há quadros que datam do século XVII, e o padre Sebastian até tem os papéis da equipa que validou tudo isto: a mistura de ingredientes das tintas todos discriminados, o tipo de molduras que se utilizavam, as pedras que ornamentavam os colares dos bispos, a origem do linho, tudo.


Na semana passada, um casal ligou-lhe para doar um quadro que encontraram num sótão de uma senhora que morreu sem herdeiros um pouco a sul de Lviv. “Fui lá e trouxe isto que aqui está”, diz o padre, com a mão sobre uma tela encostada a tantas outras. É uma imagem da Virgem, pintada por Olena Kulchytska, a mais famosa artista de Lviv da primeira metade do século XX.


Percorremos prateleiras arqueadas do peso de livros antigos, filas de esculturas de Jesus Cristo – só o busto, crucificado, em oração sobre uma nuvem, na cruz -, altares inteiros, centenas de peças de indumentária eclesiástica, bordados, cruzes de madeira, de mármore, de porcelana. O padre está sempre a receber chamadas, o toque do telemóvel é um sino, de números que não conhece. Atende sempre, e são sempre ucranianos que acabaram de chegar a Lviv e precisam de descansar antes de tentarem sair do país.


Tem um terço no bolso do kispo, e assim que desliga a chamada volta a pegar nele. Fala connosco sempre com o terço na mão, e se tem de pegar numa peça para mostrar arranja forma de o amarrar em voltas no pulso. Anda sempre com ele? “É a minha única arma”.


FONTE: https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/tenho-guardado-todas-as-garrafas-de-vinho-da-eucaristia-vamos-preparar-cocktails-molotov-aqui-a-resistencia-e-lei-divina-na-igreja-do-padre-sebastian/

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